Muitos mercantes são jovens e não sofreram e conviveram com os anos de chumbo que envergonharam o Brasil. Esta matéria publicada hoje no site do Estado de S. Paulo é um bom exemplo para quem não viveu a época conhecer e para quem viveu não deixar o assunto morrer.
Procura-se um
morto
38 anos
depois, documentos mostram a luta da mãe Zuzu Angel para denunciar o
assassinato do filho pela ditadura, que divulgou cartazes de ‘Procurado’ quando
Stuart já não estava vivo
Wilson Tosta
/ RIO
Uma mulher
elegantemente trajada de negro, falando um inglês perfeito e de 50 anos
presumíveis, quebrou a tranquilidade do plantão dos agentes da Polícia Civil do
Rio que, em 7 de maio de 1975, cinco dias antes do Dia das Mães, cuidavam da
segurança do general americano Mark Clark no Hotel Sheraton, em São Conrado, na
zona sul carioca. Discreta, a visitante aproveitou o momento em que Mary Clark,
mulher do militar já na reserva – comandara, na 2ª Guerra Mundial, o 5°
Exército dos Estados Unidos, ao qual fora incorporada a Força Expedicionária
Brasileira (FEB) –, abria a porta da suíte para lhe entregar um envelope,
dizer-lhe algo em voz baixa e sair rapidamente. Um segurança do Sheraton,
colaborador do Departamento Geral de Investigações Especiais (DGIE), interceptou
o pacote que, aberto, revelou-se um dossiê sobre um desaparecido político,
cidadão americano, preparado por sua mãe – a mensageira que desaparecera antes
que os policiais a detivessem.
Trinta e oito
anos depois, documentos apreendidos pela repressão da ditadura civil-militar de
1964–85, agora guardados no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro
(Aperj), revelam um pouco mais da luta de Zuleika Angel Jones (1921–1976),
estilista mineira e mãe do cidadão americano Stuart Edgar Angel Jones, para denunciar
o assassinato do filho sob tortura em 1971. Zuzu, como era conhecida, traduzira
para o inglês a carta em que o preso político Alex Polari de Alverga descrevia
em 1972 o suplício de Tutti, como a mãe o chamava – era Henrique no Movimento
Revolucionário Oito de Outubro (MR8), organização de guerrilha urbana que
integrava –, na Base Aérea do Galeão. Também escrevera um resumo do caso, de
seus movimentos, e revelara seu medo de reconhecer a verdade – Stuart estava
morto –, o que a fez ficar três anos sem procurar a carta, cuja existência
conhecia. Em 1976, conseguiu entregar outro dossiê ao secretário de Estado dos
EUA, Henry Kissinger. Morreu pouco depois.
A narrativa
de Polari, que Zuzu traduziu para enviar a Clark, é conhecida. Descreve as
torturas contra Stuart, arrastado por um jipe com boca perto do cano de
descarga do veículo, inalando gás tóxico, e apresenta aqueles que seriam seus
torturadores e assassinos, chefiados pelo brigadeiro João Paulo Burnier (morto
em 2000), que comandava a 3ª Zona Aérea, onde funcionava o Centro de
Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa), na Base Aérea do Galeão.
Acusado de envolvimento em outras ações de repressão (um plano para explodir o
Gasômetro e responsabilizar organizações de esquerda, além do uso do Para-Sar
para repressão), Burnier negava responsabilidade nos dois casos. Foi para a
reserva ainda em 1971, assim como o brigadeiro Carlos Dellamora, comandante do
Cisa, em episódio que, para o historiador Hélio Silva, deveu-se à má
repercussão da morte de Stuart.
“Perdoe-me
por levar uma tragédia tão terrível ao seu conhecimento em sua visita ao meu
país”, pede Zuzu, em um dos documentos que tentou sem sucesso fazer chegar a
Mark Clark. Para a mulher do militar americano, a quem se dirigira rapidamente
ao entregar o dossiê (“Eu sou a senhora Zuzu Angel, esposa de um americano”),
deixou um convite para visitar sua loja no Leblon, acompanhado de um lenço, “um
presente de meu filho, um anjo, chamado Stuart Jones, apelidado Tutti” e
explicou que anexava “alguns documentos muito importantes”, que pedia que
fossem entregues ao general, o que jamais aconteceu. Um dos papéis era uma foto
de Stuart, em cujo verso descrevia a “operação de martírio” contra o jovem, com
25 anos ao desaparecer, casado com Sônia Moraes Jones, morta pela repressão em
1973. “Quando meu amado filho pedia, em sua agonia, ‘água, estou morrendo’,
seus torturadores e assassinos riam e debochavam dele, como fizeram com Jesus
na cruz”, descreveu a mineira de Curvelo Zuzu, com base no relato que recebera
de Polari. “Seu corpo nunca foi entregue a mim, sua mãe. Sinto uma grande e
enorme dor.”
Separada do
americano Norman Jones, fluente em inglês, estilista com contatos
internacionais e dotada de coragem que com frequência descambava para a
temeridade, Zuzu foi um pesadelo do regime militar brasileiro, com ações que
repercutiam dentro e fora do País. Numa ocasião, chegou a tomar o microfone das
aeromoças de um Boeing para anunciar que em minutos os passageiros desceriam no
“Aeroporto Internacional do Galeão, no Rio de Janeiro, Brasil, país onde se
torturavam e matavam jovens estudantes”. Nunca aceitou a impunidade dos
responsáveis pelo martírio de Stuart, capturado em 14 de maio de 1971 na Av. 28
de Setembro, em Vila Isabel, por agentes do Centro de Informações de Segurança
da Aeronáutica (Cisa) e torturado até a morte na Base Aérea do Galeão.
Aproveitou a dupla nacionalidade do filho (brasileira e norte-americana) para
atacar a ditadura, pedindo ajuda a personalidades dos Estados Unidos, como Joan
Crawford, Liza Minelli e o senador Edward Kennedy, que levou o caso ao
Congresso dos Estados Unidos. Conseguiu assim divulgar um crime da ditadura
brasileira bem longe dela, onde a censura imposta à imprensa pelos militares
não funcionava, para irritação do governo militar.
“Em setembro
de 1971, organizei um desfile de modas em Nova York. Na oportunidade, denunciei
o que já sabia a respeito de meu filho, que já havia sido preso (...),
torturado e provavelmente assassinado pelo governo militar brasileiro”,
escreveu Zuzu em documento anexado à tradução para o inglês da carta. “A
história foi publicada em muitos jornais em todo o mundo, mas não no Brasil. De
certa forma acho que ficaram com medo quando souberam da reação dos parentes de
Stuart nos Estados Unidos e também por eu ser muito conhecida na América como
desenhista de modas, tendo amigos como Joan Crawford e outras pessoas
importantes. Após isso, por volta de outubro, os militares espalharam
cinicamente por todo o País cartazes de meu filho com o rótulo “PROCURADO”.
Esses cartazes eram encontrados em toda parte: nos aeroportos, estações, etc.
As pessoas costumavam escrever no retrato de meu filho “já foi assassinado”,
“morto”, etc. Uma vez, uma atriz de cinema muito famosa, conhecida como Elke
Maravilha, viu um desses cartazes no Aeroporto Santos Dumont (...). Ela ficou
furiosa e rasgou (...) gritando ‘covardes, vocês já o assassinaram, como ousam,
etc.’ Foi imediatamente presa e levamos uma semana para soltá-la.”
Os cartazes
contra Stuart apresentavam um jovem magro, de terno e gravata. Eram assinados
pela Delegacia Especializada de Roubos e Furtos da Secretaria de Segurança
Pública da Guanabara, e erravam o seu sobrenome. “Procura-se. Assaltante de
banco”, dizia. “STUART EDGAR ANGEL GOMES (sic) – VULGO HENRIQUE – NATURAL DA
BAHIA – FILHO DE NORMAN ANGEL GOMES E DE ZULEIKA ANGEL GOMES – SEM PROFISSÃO –
R. C. 1.842.264. ATENÇÃO. QUALQUER INFORMAÇÃO SOBRE ESTE INDIVÍDUO DEVERÁ SER
FEITA (sic) À AUTORIDADE POLICIAL OU MILITAR MAIS PRÓXIMA.” Era uma aparente
tentativa de convencer sua família de que Stuart ainda vivia: afinal, os órgãos
de repressão ainda o “procuravam”. Outra iniciativa aparentemente com o mesmo
objetivo foi a ação de supostas clientes – presumivelmente, agentes dos órgãos
de segurança e informações dos militares ou a seu serviço, que procuravam Zuzu
alegando interesse em seus vestidos e depois tentavam convencê-la de que a
versão de que Stuart fora preso, torturado e assassinado era uma “grande
mentira”, como a própria estilista relatou na carta a Clark. Uma dessas
visitantes foi a mulher de um brigadeiro da FAB, que, segundo Zuzu, lhe disse:
“Sim, um rapaz foi torturado, amarrado a um jipe e arrastado nas dependências
do Cisa – Galeão, e quando terminaram já estava morto, mas não era seu filho”.
Essa conversa, afirma a estilista no texto, foi gravada.
“A esta
altura”, continua Zuzu, na narrativa em inglês que, ironicamente, foi traduzida
para o português pela repressão, “minha mente ainda procurava resistir à cruel
ideia de que meu filho estava morto. Uma esperança louca se instalou em meu
coração e eu me recusava a acreditar que meu próprio filho passara por tão
terrível sofrimento.” E prossegue: “Todos nós somos criados com a ideia de
associar morte com cadáver, funeral, etc., e acho que por não ter visto meu
filho morto minha mente se recusava a aceitá-lo.”
A recusa da
estilista a aceitar a verdade comovia quem lhe era próximo. “Naturalmente, eu
falava muito a respeito com amigos, parentes e advogados, implorando
praticamente que me dissessem que meu filho estava vivo”, conta. “Cheguei mesmo
a telefonar para minha filha em Nova York para lhe dizer das minhas pobres
grandes esperanças, e me lembro que ela nada disse do outro lado da linha. As
pessoas eram bondosas, não tendo coragem de me dizer que eu acabaria louca
alimentando tais fantasias.”
“Nesta
época”, afirma, “Alex (Polari de Alverga) estava sendo levado às auditorias
diante dos tribunais militares e insistia em contar a história do assassinato
de Stuart. Ali ele ouviu falar a respeito de minhas dúvidas e resolveu
escrever-me a carta anexa, que entregou a sua mãe há quase três anos. Ela
guardou a carta durante todo esse tempo sem a mostrar a ninguém, por motivos
óbvios.”
“Eu própria
sabia da existência da carta, mas nunca tive a coragem de procurar obtê-la, era
covarde demais para lê-la. Mas há cerca de duas semanas, após perguntas de
(nome obliterado), achei que estava na hora de tomar coragem e pedi a carta à
mãe de Alex, sendo a mesma entregue a 27 de março, e eu a li!”
“A 28 de
março – data da crucificação – pedi a Deus que me ajudasse dando-me forças e
tranquilidade para traduzir esta carta. Fiquei em casa por três dias, só,
trabalhando na tradução. Parei muitas vezes para pensar, temendo que não
conseguiria fazê-lo, mas na noite de domingo terminei a carta (30 de março de
1975).”
“Sinto-me
aliviada e em paz.”
Zuzu sabia
que corria muitos riscos e já manifestara seus temores a quem lhe era próximo,
chegando a deixar com o compositor Chico Buarque de Hollanda uma mensagem em
que afirmava: “Se eu aparecer morta, por acidente ou outro meio, terá sido obra
dos assassinos do meu amado filho.” Em 14 de abril de 1976, menos de um mês
antes do Dia das Mães, depois das 2h, o Karmann Ghia conduzido pela estilista,
que acabara de deixar uma festa, derrapou, colidiu com a mureta e capotou,
matando-a na saída do Túnel Dois Irmãos – que seria rebatizado, já na
democracia, Túnel Zuzu Angel. Em 1998, a Comissão de Mortos e Desaparecidos
Políticos, ao julgar o processo 237/96, e com base no testemunho do advogado
Marcos Pires, que declarou ter visto um carro ultrapassar pela esquerda o
veículo de Zuzu jogando-o para fora da via, reconheceu que o regime militar foi
o responsável pelo assassinato da mãe de Stuart Angel.