quarta-feira, 20 de junho de 2012

Gabriela e a Navegação de Cabotagem de Jorge Amado

O genial Jorge Amado e a sua paixão pelo mar, pelas mulheres e pelas coisas brasileiras (em especial da Bahia) estão de volta com a nova versão do clássico "Gabriela" na TV Globo. Quem gosta de televisão, de Jorge Amado e da beleza brejeira da atriz Juliana Paes está curtindo. E bota curtindo nisso.

Cena do banho de Gabriela (Juliana Paes) mostrada no segundo capítulo

Se motivos como o Blogueiro Mercante destaca acima não são suficientes para justificar um post como este num blog voltado especialmente para os mercantes marítimos, vale destacar que o livro de memórias de Jorge Amado (ou melhor, "apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei", como o próprio definiu) se chama "Navegação de Cabotagem".

" (...) Não nasci para famoso nem para ilustre, não me meço com tais medidas, nunca me senti escritor importante, grande homem: apenas escritor e homem. Menino grapiúna, cidadão da cidade pobre da Bahia, onde quer que esteja não passo de simples brasileiro andando na rua, vivendo. Nasci em Pelicado, a vida foi pródiga para comigo, deu-me mais do que pedi e mereci. Não quero erguer um monumento nem posar para a história cavalgando a glória. Que glória? Puf! Quero apenas contar algumas coisas, umas divertidas, outras melancólicas, iguais à vida. A vida, ai, quão breve navegação de cabotagem! (...)" (páginas 12 e 13 da edição comemorativa dos 100 anos de Jorge Amado).

Destacamos ainda a primeira capa do livro e o relato assinado por Paloma, filha do saudoso escritor baiano. Genial o trecho em que Paloma conta como Jorge Amado finalizou o livro:


Primeira capa do livro "Navegação de Cabotagem"


Das abas do livro
Por Paloma Amado
O ano era 1991. Creio que a proximidade dos oitenta anos fez papai - o escritor Jorge Amado - decidir-se por, finalmente, colocar no papel algumas lembranças e alguns pensamentos, fruto de uma vida intensamente vivida. A ideia o tentava há muito tempo, porém um pacto feito com Ilya Eremburg e Pablo Neruda, de nunca publicarem livro de memórias, o retinha. Depois da morte de Ilya, sua filha Irina publicou não um, mas uma série de livros de memórias, que o pai havia deixado prontos. O de Neruda, também póstumo, Confesso que vivi, saiu em plena ditadura Pinochet. Por que esperar mais? Já tinha o título para o pequeno conjunto de lembranças que iria oferecer ao público: Navegação de cabotagem.

Estavam em grande temporada francesa, para grande alegria minha, que vivia em Paris. O apartamento do Quai des Celestins era o local ideal para escrever,aconchegante, dona Zélia cozinhando risotos e brodos italianos deliciosos, o tempo friozinho, não precisou muito para seu Jorge botar mãos à obra. Aliás, o mesmo clima propício à escrita contagiou dona Zélia, que também foi para a máquina — no seu caso um computador —, escrever Chão de meninos.


Escreverem ao mesmo tempo não era comum, e na verdade criou um problema, já que mamãe sempre foi a datilografa dos originais de papai. Eu vinha de ficar desempregada, me candidatei e ganhei a vaga! Que privilégio.

Nunca vi papai tão entusiasmado, os textos fluíam com uma facilidade e uma rapidez impressionantes. Risos, lágrimas, foram grandes as emoções que sentimos juntos ao reler, corrigir, comentar cada episódio, cada luta, cada amor. Um dia chamei a atenção dele para o fato de que o "pequeno" livro já tinha mais de cem notas (era assim que ele se referia aos textos). Perguntei se a ordem de entrada em cena era a mesma da escrita e ele disse que não. Era preciso organizar o trabalho, já estava grande demais. Foi então que eu e Pedro (Pedro Costa, então meu marido)criamos uma espécie de quebra-cabeças: fiz, no computador, fichas onde se liam o título da nota e os dados principais: data, personagens, local, se político, se alegre ou triste..., identificadas por cores que facilitavam a ordenação.

A grande sala do apartamento era forrada de tecido levemente acolchoado, o que nos permitiu transformar as paredes em páginas de livro. Nelas papai prendeu com tachinhas as fichas, que trocava de ordem com grande frequência, à medida que o livro ia sendo escrito. As pessoas paravam para ler, comentavam:
Você fala de fulano em três notas seguidas..

Ele concordava ou não. Passou a ser o jogo preferido da família. Nos divertíamos muito, ele mais que todos.

A editora dera um prazo para a entrega dos originais, pois estava prevista a publicação dentro das comemorações dos oitenta anos. O pequeno livro já ia para mais de 500 páginas e parecia longe do fim. Pedro fazia a diagramação, que deveria ir para o Brasil em disquetes, para entrar direto em impressão, mas cada nota que mudava de lugar exigia mudanças na diagramação. Estava ficando difícil.

Para atender aos prazos, papai resolveu marcar uma data para acabar o livro.Como não queria cair em tentação, comprou um cruzeiro de navio pela Grécia e Turquia, convidou Misette para acompanhá-los e partiram. Eu e Pedro ficamos em Paris terminando a parte gráfica.

Logo na chegada a Atenas, onde pegariam o navio, papai enviou um novo texto.Foi assim durante toda a viagem: escrito à mão, era passado a limpo também à mão por mamãe, dona de uma bonita letra, e enviado por fax. Como vivíamos os primórdios dessa invenção genial, um dia recebi chamado da France Telecom perguntando se eu tinha consciência do custo daquelas ligações (os telefonemas – a cobrar - dados do navio eram caríssimos), e naquele dia haviam chegado 11 metros de fax mandados do mar Egeu! O problema não era tanto o dinheiro gasto, mas os apelos da Record para que mandássemos o livro, que nunca ficava pronto. Eles tinham toda a razão. Papai começou a se desculpar:

´Este é o último, eu garanto`.
Depois vinha mais um.
Este é o final.
E ainda.
Este é o derradeiro.
Quando já não encontrou mais sinônimos para a palavra último, e já chegando ao porto de Veneza, final do passeio, escreveu assim:

´Desta vez é definitivo, este é o ponto final. Juro pela alma de sua mãe`.
Reagi imediatamente:
Jure pela alma da sua, que já morreu, deixe a da minha em paz.
Fiz bem, pois de Veneza ainda chegou um, este sim, o último final derradeiro!

O livro saiu a tempo, com suas mais de 600 páginas. Maravilhosas páginas de uma vida cheia de amor, experiências e generosidade, que eu recomendo a todos".

Nenhum comentário:

Postar um comentário